segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Liberdade e Conhecimento

Aos 90 anos da morte de
Raimundo de Farias Brito
(24/07/1862, São Benedito, CE - 16/01/1917, Rio de Janeiro)


O Centro de Filosofia Brasileira do Programa de Pós-graduação em Filosofia-PPGF da UFRJ realizou, com patrocínio do PPGF e do Convênio BB-UFRJ, nos dias 24-25/09/2007, o primeiro encontro anual do Seminário Internacional Farias Brito em torno ao tema “Liberdade e Conhecimento”, no âmbito do Humanismo e em vista da filosofia moderna. A Conferência Farias Brito coube ao Prof. Dr. António Manuel Martins, da Universidade de Coimbra.

Local: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais-IFCS
Largo de São Francisco de Paula, 1
Sala Celso Lemos (3º Andar)
20051-070 Rio de Janeiro-RJ
Telef.: (021) 2224-6379

Programa
24/09/2007 (segunda-feira)
10:00 “Liberdade como Indiferença: Um Estudo de Filosofia Brasileira”
Prof. Dr. Luiz Alberto Cerqueira (UFRJ)
11:00 “Método e Estilo no Pensamento Renascentista”
Prof. Dr. Celso Martins Azar Filho (Universidade Estácio de Sá/IBMEC)
13:00 Intervalo
14:00 “A Alma Cognoscente em Pedro da Fonseca”
Prof. Dr. João Madeira (CEUCLAR/FESL)
15:00 “Doutrina da Liberdade em Descartes”
Profa. Dra. Ethel Menezes Rocha (UFRJ)
25/09/2007 (terça-feira)
14:00 Homenagem a Farias Brito (1862-1917), aos noventa anos de sua morte
Prof. Leonardo Ferreira Almada (CEFIB)
14:30 Conferência Farias Brito “A Liberdade como Princípio em Pedro da Fonseca”
Prof. Dr. António Martins (Universidade de Coimbra)
15:45 Beberetes e confraternização

Largo de São Francisco de Paula, 01 − Sala 325 C
20051-070 Rio de Janeiro-RJ
Telefone: (021) 2221-0034 - Ramal: 325
Fax: (021) 2221-1470

A Liberdade como Princípio em Pedro da Fonseca - Conferência Farias Brito

António Manuel Martins (Universidade de Coimbra)

" ... es gibt zwei Labyrinthe für den menschlichen Geist: das eine betrifft die Zusammensetzung des Kontinuums, das andere das Wesen der Freiheit. Das eine wie das andere aber entspringt aus derselben Quelle, nämlich aus dem Begriff des Unendlichen ...[Denn] man muss vor allem wissen, dass alle Geschöpfe einen Stempel der göttlichen Unendlichkeit in sich tragen, und dass dies der Ursprung der vielen wundersamen Dinge ist, die den menschlichen Geist in Staunen setzen" (Leibniz, Über die Freiheit, II/499).

Notas ao fim do texto


As questões ligadas à liberdade humana sempre constituíram um dos temas centrais e mais difíceis da história do pensamento humano. Quer numa reflexão mais global sobre o destino humano ou mais dirigida à interpretação do sentido da acção humana, a tematização da liberdade nas suas múltiplas dimensões sempre acompanhou a mais aguda reflexão sobre o papel do homem na história. Tal necessidade agudiza-se em tempos de crise. Precisamente aquilo que acontece, a vários níveis, durante os tempos em que Fonseca pensa e escreve sobre este tema: a segunda metade do séc. XVI.

A liberdade aparece frequentemente como um dos vectores fundamentais do programa da Modernidade. Programa que vai ser objecto de análise e muita controvérsia nos escritos mais significativos do pensamento moderno nas áreas da filosofia, teologia e direito. A liberdade transforma-se num tema central da filosofia e da política que vai ficar para sempre associado à Modernidade pela consagração simbólica no ideário da Revolução Francesa. Se é possível associar o nome de um indivíduo a processos históricos tão complexos talvez Lutero seja um dos candidatos mais plausíveis a figura simbólica desse processo. No seu escrito programático Von der Freiheit eines Christenmenschen (1520) proclama a libertação, pela fé, de todos os poderes deste mundo com particular incidência no poder do Papa e de toda a Igreja romana.[1] Mais do que o texto polémico De servo arbitrio (1525), contra Erasmo de Roterdão, é o seu papel no desenvolvimento da Reforma que vai condicionar muita coisa na transição do mundo medieval para os tempos modernos. A própria reacção da Igreja de Roma com a Contra-Reforma dificilmente se explicaria sem o papel de Lutero na Reforma. Não o único mas foi com certeza dos mais importantes e, por isso, figura simbólica do mesmo. É também nessa qualidade que ele comparece no texto de Fonseca quando polemiza com a compreensão da liberdade propugnada pelos Luteranos. Fonseca não podia, tal como muitos dos seus contemporâneos, aceitar a solução de Lutero para os problemas tradicionalmente associados à reflexão sobre o livre arbítrio e a omnipotência e omnisciência divinas. Os escritos de Lutero e de outros teólogos da Reforma vieram recolocar na ordem do dia a discussão de um conjunto de problemas que já contavam com uma longa história. O contexto teológico destas discussões prolonga o quadro conceptual que se foi elaborando no âmbito do pensamento medieval a partir da recepção da filosofia grega.

A compreensão pré-moderna da liberdade tem raízes profundas na filosofia grega e na tradição judaico-cristã. Pedro da Fonseca conhecia, como poucos, essa tradição plural.

As questões suscitadas pela articulação da predestinação e/ou da presciência divinas e da liberdade humana são analisadas por Fonseca num conjunto de seis quaestiones, inseridas a seguir à explanatio de Met. E VI, 2 e ocupa umas densas 116 páginas na edição de Colónia, a mais acessível hoje. O próprio articulado das questões mostra a intenção predominantemente filosófica do texto de Fonseca, independentemente do interesse teológico e institucional que também está manifestamente presente[2].

Antes de entrarmos na análise sumária do texto de Fonseca duas palavras sobre o contexto histórico-crítico da discussão.

A discussão de Pedro da Fonseca, tal como a de muitos dos seus contemporâneos e autores mais antigos dá especial relevo ao célebre texto de Aristóteles De Interpretatione 9. Este texto foi alvo de intenso comentário na Antiguidade, durante a Idade Média e ao longo dos séculos sem esquecer a discussão das últimas décadas. Ontem como hoje não há consenso sobre a interpretação exacta do texto e muito menos sobre as questões teóricas envolvidas. Parece claro que Aristóteles admite que é necessário que haja amanhã uma batalha naval ou que não haja amanhã uma batalha naval ao mesmo tempo que parece negar que se possa falar de necessidade em ambos os casos, no mesmo sentido. Para alguns, o que Aristóteles quer dizer é simplesmente que um enunciado como “haverá amanhã uma batalha naval” não tem qualquer valor de verdade enquanto outros pensam que Aristóteles lhe atribuía um valor de verdade negando apenas que se tratasse de uma verdade necessária. A maioria dos comentadores aceitava que a doutrina defendida por Aristóteles, fosse qual fosse a sua formulação mais rigorosa, fazia parte de uma estratégia argumentativa que tinha como grande meta refutar o determinismo e qualquer forma de fatalismo que pusesse em causa a possibilidade de uma verdadeira deliberação. Se o homem não puder escolher, então, será vão todo o seu esforço, será fútil todo o elogio da liberdade. Na realidade, deixaria de ser possível falar de práxis, de agir humano como algo que distingue os humanos de outros seres naturais. Este tipo de argumentação foi conhecido por Argumento do Preguiçoso e tem sido recentemente analisado em função dos estudos mais recentes sobre a problemática do determinismo no estoicismo antigo. Destes o mais importante é o de Suzanne Bobzien[3] que pretende reduzir o debate entre determinismo e indeterminismo a um episódio limitado no tempo com origem no século II, na época imperial. Partilhamos a convicção daqueles que pensam ser mais correcta, nas suas linhas gerais, a posição tradicional que faz remontar este confronto entre determinismo e indeterminismo à oposição a Demócrito, primeiro defensor conhecido de uma posição tipicamente determinista[4]. Nela participaram, em graus e formas diversas, Platão, Aristóteles, Epicuro tendo alguns estóicos defendido uma posição determinista. Polémica que envolveu filósofos de várias épocas e escolas[5]. No fundo, é este o conjunto de problemas que Fonseca analisa no seu texto. O uso de expressões típicas de controvérsias teológicas e a referência permanente aos atributos divinos não nos devem desviar a atenção do núcleo filosófico dos problemas. Já defendemos em outro lugar e em outras ocasiões a tese de que Pedro da Fonseca tinha uma concepção sistemática da filosofia e sabia, desde o momento em que escreveu o primeiro tomo da sua obra metafísica o lugar exacto em que iria tratar cada um dos temas desenvolvidos ao longo das quaestiones[6]. Recordemos apenas que já no segundo tomo dos CMA (1589), falando das teses de Avicena sobre a criação, Fonseca remete o esclarecimento da problemática da criação e da liberdade divina para os desenvolvimentos no contexto de Metafísica XII. È para este mesmo núcleo de questões que Fonseca remete no texto que estamos a analisar quando fala da raiz da contingência e da omnipotência divina (Fonseca, CMA III, c. 96). É ainda para esse mesmo núcleo que ele remete o tratamento da problemática da providentia que desde a Antiguidade tardia andou associada às questões da liberdade e do destino do homem. Apesar de introduzir aqui a questão de saber se a providência divina “impõe qualquer tipo de necessidade a todos os futuros contingentes", Fonseca não deixa de, por um lado, desenvolver amplamente esta problemática (pp. 132-180)[7] e, por outro, reconhecer que, atendendo complexidade da questão e à quantidade de erros que se foram multiplicando no decurso dos séculos, designadamente no contexto da filosofia pagã, se imporia um desenvolvimento ainda maior (!) deste tema “cujo lugar próprio é no contexto do livro duodécimo onde se discutirá mais longamente sobre a providencia divina”[8]. No texto que nos ocupa, o tema central é, sem sombra de dúvidas a liberdade humana que está no centro da construção teórica de Fonseca a partir da referência fundacional ao texto aristotélico.

Em termos estritamente filosóficos, parece que o principal objectivo de Fonseca passa por assegurar uma correcta interpretação da doutrina aristotélica dos futuros contingentes. A interpretação dos textos do Estagirita, iluminada pela tradição, constituiria a base conceptual mais sólida e adequada para uma defesa da posição teológica tradicional e a refutação das teses heterodoxas de autores como Lutero e Calvino. Apesar de tudo, Fonseca não deixa de apresentar a sua solução para conciliar a presciência divina com a liberdade humana através daquilo a que chamou a ciência dos futuros condicionados, uma posição próxima da defendida por Molina, Suárez e Belarmino no contexto da querela “de auxiliis”. Não entraremos nos detalhes desta discussão. Procuraremos centrar-nos na análise que Fonseca faz dos problemas ligados aos futuros contingentes, a partir de Aristóteles, e como delimita e caracteriza a esfera própria do agir humano e da liberdade que o define. Na medida em que alguns autores recentes defendem a tese de que muitos dos problemas tradicionalmente associados a estas questões tem sua origem numa falta de rigor lógico e muito particularmente daquilo que é designado por “falácia modal”, importa examinar cuidadosamente a argumentação de Fonseca para verificarmos se, porventura, ele foi mais um dos que cometeu este erro lógico[9].

***

Comecemos pela clarificação de algumas noções: possibilidade, necessidade e contingência. A dificuldade em definir e usar com rigor estes conceitos é hoje tão grande como ontem para a generalidade dos autores que escrevem textos de teologia ou filosofia apesar do grande desenvolvimento que a lógica modal conheceu no decurso do século XX.

Fonseca começa por elucidar o termo contingência distinguindo três usos principais:

a) quando designa algo que acontece “praeter intentionem agentium naturalium”;
b) quando designa a contingência “in essendo” daquilo que, pela sua própria natureza, pode ser ou não ser, mesmo que nunca venha a existir. Neste sentido, é “contingente” tudo o que não é “absolutamente necessário” ou impossível. Estamos aqui perante um uso metafísico que não pode ser confundido com a distinção entre o necessário e o possível lógicos.
c) Usa-se ainda para designar eventos contingentes (contingentia in eueniendo), isto é, todos os actos livres (feitos por quem possui liberdade e, por isso mesmo, pode fazer com que algo lhe aconteça ou não). A esta contingência opõe-se a necessidade que caracteriza tudo o que acontece na natureza fora da esfera própria da(s) vontade(s) livre(s)[10].

Não restam dúvidas que é precisamente este terceiro tipo de contingência o mais relevante para as suas análises: aquele que tem que ver com o domínio dos acontecimentos que dependem da acção dos agentes livres.

"Nam luce clarius est dari in nobis, quatenus arbitrii libertate utimur, plurima huiusmodi contingentia; quod usque adeo perspicuum est, ut recte dicat Scotus, id per aliquid quod re ipsa nobis euidentius sit demonstrari non posse; nec certe Aristoteles, Platoue, aut alius magni nominis Philosophus seu Theologus id hactenus a priori demonstrauit; sed tantum ex incommodis quae alioquin sequerentur, coarguunt proteruos, qui ea incommoda esse negare non audent: quorum argumentorum pleni sunt libri et Philosophorum et Patrum, et nostrae potissimum aetatis Theologorum qui contra Lutheranorum insania hac de re scripserunt." (Fonseca, CMA III, L.VI, c.2, q.2, s.1, p.82)

A liberdade de agir é aqui assumida como um dado tão evidente que não se admite sequer a possibilidade de encontrar algo mais evidente que permitisse construir uma dedução da liberdade. Se a liberdade não se pode deduzir nem recusar, então, resta mostrar — a quem a pretender negar — indirectamente, a impossibilidade da sua negação. É precisamente este tipo de estratégia argumentativa que foi seguida por Aristóteles e todos os grandes pensadores da tradição bem como pelos Padres da Igreja, comenta Fonseca. Porém, a multiplicidade de argumentos deste tipo, acumulados ao longo dos séculos e que enche os livros dos teólogos não constitui o alvo primordial da reflexão de Fonseca. O que está em causa é uma compreensão adequada dessa mesma liberdade de modo a superar eventuais dificuldades colocadas pelos defensores de qualquer forma de determinismo ou fatalismo e encontrar uma maneira de articular coerentemente aquilo que pensamos e dizemos acerca da liberdade humana e da providência divina bem como da presciência divina dos futuros contingentes.

"sed illud tantum inferius diligenter curandum, ut per se notam nobis uim liberi arbitrii nostri a calumniis quorundam et Gentilium et Haereticorum uendicemus: et libertatem nostram cum certa et infallibili Dei Opt. Max. futurorum contingentium praescientia et prouidentia cohaerere ostendamus." (sublinhado nosso; Fonseca, CMA III, p.83)

Fonseca admite, contudo, que se alguém pudesse ter um conhecimento quiditativo da essência da nossa alma seria capaz de provar/demonstrar a existência do livre arbítrio como uma das nossas faculdades[11].

Importa salientar aqui o contraste estabelecido por Fonseca, no contexto do terceiro uso de “contingente”, entre os domínios da “natureza” e da “liberdade”. Qual é o princípio que permite escapar à necessidade que regula tudo quanto acontece na natureza? Esse princípio é, claramente, a razão (“ratio”) no exercício efectivo de todas as suas potencialidades. Assim, não basta ser dotado de razão no sentido de ter as capacidades com que geralmente é dotada a espécie humana. É preciso ter capacidade de usar efectivamente esta razão para podermos falar de actos verdadeiramente livres. O texto de Fonseca não deixa margem para dúvidas: as crianças, antes do uso da razão e os loucos não são livres no seu agir apesar de também neles se dar indiferença no seu comportamento[12]. A verdadeira liberdade, aquela que pode responsabilizar-se pelas suas decisões e permite, portanto, que se fale de mérito ou demérito do agente livre “postula o uso da razão” e o “poder de controlar os seus actos” (dominium)[13]. O mesmo tinha já afirmado, alguns anos antes, quando, a propósito da questão de saber se todos os indivíduos são igualmente perfeitos indicava a razão ou “capacidade de inteligência” como o princípio constitutivo da liberdade[14]. O que distingue estes agentes é o facto de não estarem totalmente sujeitos às causas naturais mas serem “agentia per intellectum[15]. Em contraposição, no domínio dos chamados “agentes puramente naturais” a necessidade impera. Por isso, não repugna a Fonseca aceitar, neste sentido e nesta esfera, um certo determinismo e mesmo que se possa falar de “destino”:

"Dicendum igitur, etsi in rebus pure naturalibus dantur contingentia in eueniendo comparatione suarum causarum particularium praecise sumptarum, tamen posito generali ordine causarum omnium a Deo instituto, omnia in eo rerum genere simpliciter et absolute necessitate naturali euenire." (CMA III, L.VI, c.2, q.2, s.4, p. 85, sublinhado nosso)[16].

Fonseca justifica esta posição apelando para um "axioma comum de todos os filósofos" insistindo na idéia de que, suposta esta ordem natural das causas, a conexão entre as causas naturais e os respectivos efeitos é necessária. Esta visão da estrutura causal do mundo e da natureza não está muito longe daquela que configura a compreensão moderna da ciência. O próprio recurso a analogias mecânicas para falar do mundo e da natureza, tão ao gosto de muitos filósofos modernos, não está ausente do texto de Fonseca. Fala, neste contexto de “toda a máquina celeste”[17] e de “mundi machina[18].

Não podemos desenvolver aqui as questões implicadas nesta compreensão da natureza e da liberdade e das aporias a que conduziu, por diversas vias, em muitos autores modernos. Baste assinalar o problema e caracterizar de forma sucinta mas rigorosa a posição de Fonseca nesta matéria[19].

Tomando como fio condutor a questão dos futuros contingentes tal como é lida a partir da polémica em torno do texto De Int. 9 sobre a verdade dos enunciados acerca de acontecimentos futuros poderíamos sintetizar assim a sua tese. Tratando-se de acontecimentos puramente naturais (isto é, que não incluem a esfera específica da liberdade humana) não vê razão para recusar o seu valor de verdade determinado; o mesmo não se poderá dizer dos acontecimentos estritamente vinculados à decisão livre do acção humana mantendo-se, nesse caso, a tese de um valor de verdade indeterminado[20]. Porém, mesmo no caso dos enunciados sobre futuros contingentes em que estão em jogo acontecimentos naturais, o seu valor de verdade só é determinado quando as proposições em apreço dizem algo bem determinado sobre os efeitos de certas causas[21]. A leitura que Fonseca faz do texto do De Interpretatione vai no sentido de que Aristóteles falou, a propósito de um enunciado sobre uma batalha naval futura, de um valor de verdade indeterminado precisamente porque não se tratava de um evento puramente natural mas de algo que dependia da decisão livre de vários intervenientes. Sendo a vontade livre, por sua natureza, indeterminada com respeito a vários actos seus não se pode falar de verdade ou falsidade determinada de proposições que dizem respeito a actos futuros de agentes livres[22] .

Na longa exposição sobre a raiz da contingência e articulação da presciência com a liberdade humana Fonseca vai discutindo as principais interpretações de Tomás de Aquino, Escoto, Ockam, entre outros. Vai insistindo sempre na mesma tese de que a vontade livre tem sempre, em qualquer instante, o poder de se autodeterminar em sentidos opostos[23] . Somos constantemente confrontados com a tese de que a vontade humana goza de autonomia suficiente para se determinar a si mesma em todos os actos livres. Trata-se do princípio mais seguro de toda a praxis humana. Nas palavras de Fonseca, é o próprio Aristóteles quem o confirma claramente no livro nono da Metafísica quando apresenta esta capacidade de autoderminação da vontade em todos os actos livres como a ratio formalis da liberdade humana.

"Est enim Philosophiae moralis firmissimum principium ab Aristotele libro nono huius operis, capite quinto, constitutum uoluntatem nostram se ipsam determinare ad omnes actus liberos, atque in hac re positam esse formaliter totam libertatis rationem; nullamque potentiam que uel per essentiam, uel per participationem rationalis non sit, liberum actum exercere nisi id quod dominatur, hoc est, ipsa uoluntas indifferentiam suam, sibique subiectarum uirium ad alterum oppositorum siue contrarie siue contradictorie determinet. Quod si uoluntas se ipsam et caeteras potentias quouis modo rationales ad actus liberos determinat: ergo non indiget alia determinatione ad eosdem actus, sed tantum ut Deus generali suo influxu sic cum ea concurrat, ut ipsae se actu determinare possit..." (CMA III, L. VI, c. 2, q. 4, s. 6, p. 115)

Com esta citação longa chegamos ao cerne da questão para que aponta o título desta conferência. Ficam muitos argumentos por analisar quer a partir do texto de Fonseca quer da tradição com particular relevo para o texto de Aristóteles. Tínhamos referido, em dado momento, a questão da falácia modal que estaria, segundo alguns, na origem de muitos equívocos em torno da liberdade e dos futuros contingentes. Tanto quanto pudemos observar não cremos que Fonseca tenha cometido tal falácia. Mas não poderemos justificar cabalmente esta afirmação a partir do que dissemos pois não analisamos a complexa solução que Fonseca propõe para compatibilizar a presciência e providência divinas com o livre arbítrio. 

Notas
[1] No seu estilo pouco dado a distinções subtis e que lhe valeu muita incompreensão mesmo dos que lhe estavam mais próximos Lutero sintetiza a sua compreensão da liberdade naquele escrito em duas frases: "Ein Christenmenschen ist ein freier Herr über alle Dinge und niemandem untertan. Ein Christenmenschen ist ein dienstbarer Knecht aller Dinge und jedermann untertan." Luther, Deutsch, Bd. 2, (Göttingen: 1981) p. 251. Cf. Wolfgang Behnk, Contra Liberum Arbitrium – Pro Gratia. Willenslehre und Christuszeugnis bei Luther und Ihre Interpretation durch die neuere Lutherforschung.(Frankfurt:1982) e Martin Bogdahn, Die Rechtfertigungslehre Luthers im Urteil der neueren katholischen Theologie. Möglichkeiten und Tendenzen der katholischen Lutherdeutung in evangelischer Sicht (Göttingen: 1971).
[2] Vejamos a simples enumeração das questões: Q. I - Num entis per accidens possit esse scientia. Q. II - Num in rebus pure naturalibus detur aliquid contingens. Q. III - Quaenam sit radix contingentiae. Q. IV - Num Dei praescientia imponat necessitatem omnibus futuris euentibus. Q. V - Num diuina prouidentia omnibus futuris euentibus necessitatem imponat. Q. VI - Quonam pacto Deus progressus uideatur apud se in actibus aeternae suae praescientia ac prouidentia. CMA III, Coloniae, 1615, pp. 77-193.
[3] Determinism and Freedom in Stoic Philosophy (Oxford: 1998).
[4] Ver, por exemplo, Carlo Natali & Stefano Maso (ed.), La catena delle cause. Determinismo e antideterminismo nel pensiero antico e in quello contemporaneo. (Amsterdam: 2005).
[5] Relembremos aqui alguns textos que documentam este debate até à segunda metade do séc III quando Plotino escreve um tratado Sobre o Destino (En. III, 1): De fato de Cícero (44 AC); o tratado do Pseudo-Plutarco sobre a providência e o destino escrito na primeira metade do séc. II e o tratado sobre o destino de Alexandre de Afrodísia, escrito entre 198 e 209.
[6] A. M. Martins, “A metafísica inacabada de Pedro da Fonseca”, Revista Portuguesa de Filosofia, 47 (1991), pp. 517-533.

[7] É a q. 5 que se desenvolve ao longo de 14 densas secções.
[8] Fonseca, CMA III, p.135.
[9] Uma noção sumária do que está em jogo pode ler-se no artigo de Norman Swartz, “Foreknowledge and Free Will” in The Internet Encyclopedia of Philosophy, de acesso livre na web; para uma justificação teórica mais pormenorizada bem como técnicas de lógica modal de prova da “falácia modal” ver Raymond Bradley & Norman Swartz, Possible Worlds (Indianapolis: Hackett, 1979), pp. 350-365.

[10] Fonseca, CMA III, p. 82. 
[11] “Si quis tamen in hac uita ipsam animae nostrae essentiam quiditaiue cognosceret, non dubium quin per eam priori liberii arbitrii nostrae facultatem demonstrare possit” CMA III, p. 82.
[12] “Pueri ante usum rationis, amentes etiam, immo et belluae in quibusdam earum actibus, censentur agentia pure naturalia, hoc est non libera, quia non agunt ex libero arbitrio; et tamen ex se sunt indifferentia in agendo quia sponte sua agunt hoc uel illud, uel etiam ab agendo abstinent.” CMA III, p. 83.
[13] Fonseca, CMA III, p. 84.
[14] “Quod si arbitrii libertas sumatur pro ea, qua creaturae, rationis siue intelligentiae capaces, sunt liberae a difficultate amplectendi utramuis contradictionis partem propter intelligentiae perfectionem, aut alia de causa; recte quidem colligetur ex inaequali perfectione essentiali individuorum inaequalitas eorum arbitrii libertatis.” CMA II, c. 1090.
[15] CMA III, p. 86.
[16] "Alterum est, si a prima opinione de fato tollatur necessitas humanarum actionum, tantumque res pure naturales, aut etiam ipsi homines ratione solius corporeae constitutionis dicantur subdi caelestibus corporibus, non dubium esse quin ea sententia sit uera". CMA III, L.VI, c.2, q.2, s.4, p.87.
[17] “Ex quibus colligendum est, ea ratione omnia effecta pure naturalia posse ascribi toti caelesti machinae, si omnes orbes caelestes simul accipiantur et causa illa efficiens quae omnia per per intellectum disposuit, nullique orbi caelesti quasi forma naturalis est addicta, illis omnibus immediate uti intelligatur ac si esset omnium generalis forma naturalis, semper eodem modo agens, ut haec inferiora more causarum naturalium administret” CMA III, p. 89.
[18] Ao descrever as diversas ordens dos mundos possíveis para explicar a natureza do saber condicionado de Deus relativamente aos futuros contingentes livres fala assim a propósito do quarto momento da sua reconstrução: “Nam cum Angeli creandi essent simul cum ipsa mundi machina, ut dictum est…” CMA III, p. 183.
[19] Esta concepção da regularidade dos fenómenos naturais pode conduzir a uma série de dificuldades virtualmente insuperáveis sobretudo se se identificar, algo precepitadamente, a necessidade na natureza com aquilo que se pode observar sempre na mesma. O texto de Fonseca fornece um exemplo claro desse tipo de dificuldades no âmbito da astronomia (CMA III, p. 88).
[20] "Ad alterum argumentum dices, cum Aristotele in loco citato neget propositiones siue enuntiationes de futuris contingentibus esse determinate ueras, aut determinate falsas, non id negare propter enuntiationes de rebus pure naturalibus, sed propter eas quae a libero arbitrio pendent, de quibus consultatio et deliberatio haberi solet, ut hoc uel illo modo fiant: hinc enim desumit ille eius rei probationem" (CMA III, p. 90).

[21] “…non dubium est quin propositiones que futurum aliquid pure naturaliter euenturum pronuntiant, determinate uerae sint si significent id quod ex talibus causis simul iunctis euenturum est; falsae autem determinate si significent id quod ex illis euenturum non est”. CMA III, p. 89.
[22] “Nam cum uoluntas sit ex se indeterminata ad quoslibet actus suos, siue elicitos siue imperatos, possitque non soum uelle hoc uel illud; sed etiam se a quocumque actu libero cohibere idque supposito etiam toto uniuersi naturali ordine et quibusuis circunstantiis; efficitur ut si ueritas enuntiationum de futuro ex causis rerum significatarum iudicanda est, nulla determinata ueritas aut falsitas sit in enuntiationibus de futuris uoluntariis...” CMA III, p. 90. Com o seu sentido de rigor interpretativo, Fonseca vai chamar a atenção, um pouco adiante, para o facto de no texto tão discutido (De Int. 9) não se encontrar a expressão determinate como muitos julgam ser esse o caso mas, de facto, ela foi introduzida na discussão, mais tarde, pelos peripatéticos. “Pro solutione harum obiectionum aduertendum est particulam [Determinate] quae tam saepe usurpatur in hac materia non reperiri omnino in capite citato de futuris contingentibus, ubi nonulli credunt uel semel usurpari, sed inducta esse a Peripateticis...” CMA III, p. 92.
[23] “Non est igitur negandum uoluntatem esse liberam in aliquo instanti, pro illo eodem praecise; nec dicendum ( quod idem est) deesse illi potentiam ad oppositos actus in eo exercendos”. CMA III, p. 103.

A Liberdade como Superação da Indiferença

Luiz Alberto Cerqueira (UFRJ)

Notas ao fim do texto


Na incorporação da idéia de modernização[1] ao contexto brasileiro, o problema filosófico central é a questão da liberdade. Após a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, a abertura dos portos às nações amigas e a elevação do Brasil a Reino Unido foram os traços decisivos para configurar um quadro de emancipação cuja ambiência ganhou vida com a chegada, em 1816, da Missão Artística Francesa. Grande foi o impacto da presença dos artistas franceses no âmbito das idéias, mas a extensão e a profundidade desse impacto só poderão ser corretamente avaliadas se levarmos em conta, primeiramente que, depois da reforma pombalina da universidade, em 1772, a intelectualidade brasileira já descobrira na língua francesa um caminho de acesso à filosofia moderna[2]; em segundo lugar, que os artistas franceses introduziram uma imagem contrária à dos artistas brasileiros, então contemplativos e esteticamente indiferentes[3], de maneira que esses mestres, fiéis ao espírito do Iluminismo francês [4], nos instigaram, com seu exemplo e seu ensino, a pensar um sentido intrínseco da liberdade em termos de superação dessa indiferença.

Queremos mostrar que foi em face de uma concepção da liberdade gerada no âmbito do Iluminismo francês, nomeadamente por Jean-Jacques Rousseau, que Domingos José Gonçalves de Magalhães estabeleceu no Brasil a idéia da liberdade como princípio de conhecimento e de ação moral; outrossim, que foi por intermédio dessa mesma concepção rousseauniana que ele conciliou a experiência filosófica brasileira sob a orientação dos jesuítas e a moderna doutrina cartesiana da liberdade.

I

Toda a filosofia de Rousseau (1712-1778) gira em torno à sua concepção do homem natural e à sua preocupação em refutar a doutrina congênere de Thomas Hobbes (1588-1679). Contrariamente a este, ele não descreve o puro estado de natureza como uma guerra de todos contra todos, mas sim como um estado em que cada qual se encontra separado por completo dos demais que, por sua vez, lhe são indiferentes. Segundo esta concepção, não há por natureza vínculo moral nem sentimental entre os indivíduos; nenhuma idéia de dever, nenhum movimento de simpatia que estabeleça uma associação entre eles: cada um existe para si mesmo e busca tão somente o que é necessário para a conservação da própria vida:

"Hobbes pretende que o homem é naturalmente intrépido e só procura atacar e combater [...] nada é tão tímido quanto o homem no estado de natureza [...] ele está sempre trêmulo e pronto para fugir ao menor ruído que o impressione, ao menor movimento que perceba. Isso pode ocorrer também em relação aos objetos que não conhece, e não duvido que se amedronte com todas as novas situações em que se encontre, quando não pode distinguir o bem e o mal que delas deve esperar, ou quando não pode comparar suas forças com os perigos que tem de correr; circunstâncias essas raras no estado de natureza, no qual todas as coisas progridem de uma maneira uniforme, e no qual nada está sujeito a mudanças bruscas e contínuas [...] Sozinho, ocioso, e sempre próximo do perigo [...] deve gostar de dormir e ter o sono leve como o dos animais que, pensando pouco, dormem todo o tempo em que não estão pensando. Sendo a própria conservação quase o seu único cuidado, suas faculdades mais excitadas devem ser aquelas cujo único objetivo é o ataque e a defesa [...] os órgãos que só se aperfeiçoam pela indolência e pela sensualidade devem permanecer em estado de grosseria [...] ele terá o tato e o paladar de uma rudeza extrema, sendo de alta sutileza a visão, a audição e o olfato." (ROUSSEAU, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Primeira Parte)

Segundo Rousseau, o defeito da doutrina de Hobbes reside no fato de que o autor do Leviatã atribui à natureza humana não este egoísmo pacífico, e sim um egoísmo agressivo. Ademais, acrescenta, se Hobbes viu nas forças instintivas, como a sensualidade, uma evidência da limitação do poder humano, ele todavia deixou de perceber que tal condição, que ele viu como efeito do pouco uso da razão, também é a causa que impede que dela abusemos para a criação sem limite das novas necessidade que fazem do homem lobo para o próprio homem, justamente porque pelo corpo somos chamados constantemente para a vida prática:

"[Hobbes] deveria dizer que, sendo o estado de natureza aquele em que o cuidado com a nossa conservação é menos prejudicial à conservação alheia era o mais apropriado para a paz e o mais conveniente ao gênero humano. Ele diz justamente o contrário, por ter introduzido impropriamente [...] a necessidade de satisfazer uma imensa quantidade de paixões que são obra da sociedade e tornam necessárias as leis [...] Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar da razão [...] impede-os ao mesmo tempo de abusar de suas faculdades." (ROUSSEAU, ibidem)

Para Rousseau, o impulso à pilhagem e à dominação violenta é estranho ao estado de natureza, e só nasce a partir do momento em que o indivíduo passa a viver em sociedade e nela conhece todos os desejos artificiais que o degeneram. Portanto, o fator dominante na constituição psíquica do homem natural não seria a opressão violenta dos seus semelhantes, senão a indiferença na vontade:

"A natureza manda em todos os animais, e o bicho obedece. O homem sente a mesma impressão, mas se reconhece livre para aquiescer ou para resistir, sendo sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma [...] Querer e não querer, desejar e temer, serão as primeiras e quase únicas operações de sua alma até que novas circunstâncias nele provoquem novos desenvolvimentos [...] só buscamos conhecer por desejarmos usufruir, não sendo possível conceber por que aquele que não tivesse desejos nem temores se daria ao trabalho de raciocinar [...] quem não verá que tudo parece afastar do homem selvagem a tentação e os meios de deixar de sê-lo? [...] Suas módicas necessidades encontram-se tão facilmente ao alcance da mão, e ele está tão longe do grau de conhecimentos necessário para desejar adquirir outros maiores, que não pode ter nem previdência, nem curiosidade. O espetáculo da natureza, à força de se lhe tornar familiar, torna-se-lhe indiferente (indifférent)." (ROUSSEAU, ibidem)

Mesmo reconhecendo que o homem natural é capaz de simpatia, Rousseau afirma que esta não tem suas raízes num instinto social inato, senão no dom da fantasia. Isto quer dizer: o homem possui por natureza a capacidade de colocar-se no ser e na sensibilidade de outro, e esta faculdade de simpatizar lhe permite sentir a dor alheia como sendo, até certo ponto, própria. E semelhante forma de compaixão, que supera o mero sentimento de si, poderia ser sua finalidade, sua meta enfim, mas nunca poderia constituir-se em ponto de partida (ROUSSEAU, ibidem). De maneira que no estado de natureza não poderia existir uma harmonia entre o interesse próprio e o interesse de todos, pois o interesse de cada um jamais coincidiria com o interesse geral, pelo contrário, se excluiriam: “o mais forte nunca é bastante forte para ser sempre o senhor, se não transformar sua força em direito e a obediência em dever” (ROUSSEAU, O contrato social I, III). Por isto, observa Rousseau, nas primeiras sociedades, uma vez que não são constituídas conscientemente pela vontade, senão como o resultado fortuito das forças a que o homem sucumbe ao invés de dominar, as leis sociais não são mais que um jugo que cada um trata de impor ao outro, e não a si mesmo. E foi esta, segundo ele, a forma de contrato que, de início, prevaleceu historicamente nas sociedades; forma que encerra um vínculo puramente jurídico, mas sem qualquer vínculo moral genuíno. Sendo assim, o contrato social seria nulo, contraditório e irracional, pois ao invés vez de reunir internamente as vontades individuais, forçá-las-ia exteriormente à união empregando meios físicos de poder. Semelhante vínculo teria apenas um caráter fático, porém sem respaldo moral e, neste sentido, sem valor, pois o valor da união consistiria numa soberania à qual o indivíduo não só está de fato obrigado, como também por ela ele mesmo se obriga. Mas como seria possível tal obrigação, considerando-se a indiferença na vontade do homem natural? Segundo Rousseau, “enquanto [os homens] se aplicaram apenas a obras que um homem podia fazer sozinho [...] viveram tão livres, sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza e continuaram a usufruir entre si as doçuras de um relacionamento independente” (ROUSSEAU, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Primeira Parte). Considerando-se, porém, a história da humanidade, há que destacar, segundo ele, para além da indiferença na vontade, “outra qualidade muito específica que distingue [os homens], e sobre a qual não pode haver contestação: a faculdade de aperfeiçoar-se; faculdade essa que [...] desenvolve sucessivamente todas as demais” (ROUSSEAU, ibidem). Com base nesta capacidade humana de aperfeiçoar-se, eis, portanto, a forma de soberania que pretende assegurar-nos Rousseau n’O contrato social: quando os sujeitos que se obrigam reciprocamente no contrato permanecem, apesar desta obrigação, em seu estado de indiferença, ou quando os indivíduos instituem um poder soberano ao qual se submetem indiferentemente, dessa reunião não resulta nenhuma unidade autêntica, porque esta não é possível mediante coação, senão pela liberdade. Tal liberdade, porém, como vemos não significa a exclusão da obrigação, pelo contrário, significa a sua rigorosa necessidade; nem esta obrigação é a de uma vontade individual submetida a outra. Trata-se de uma vontade individual que, contando com o uso da razão, vai ao encontro de uma vontade geral:

"O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e pode alcançar; o que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui [...] poder-se-ia acrescentar à aquisição do estado civil a liberdade moral, a única que torna o homem verdadeiramente senhor de si, porquanto o impulso do mero apetite é escravidão, e a obediência à lei que se prescreveu a si mesmo é liberdade." (ROUSSEAU, O contrato social I, VIII) "Cada qual, desvinculando seu interesse do interesse comum, vê que não pode separá-los por inteiro, porém sua parte do mal público parece-lhe insignificante quando comparado ao bem exclusivo de que pretende apropriar-se." (ROUSSEAU, idem IV, I)

Este tipo de contrato é o único que, segundo Rousseau, possui não só uma força coercitiva física, mas também moralmente obrigatória. Desta conexão surge a estrita correlação que, para ele, existe entre os conceitos autênticos de liberdade e de lei: liberdade então quer dizer a vinculação a uma lei rigorosa e inviolável que cada indivíduo estabelece na medida em que ele mesmo, por vontade própria, se obriga à vontade geral. O que constitui a essência da liberdade nada tem a ver com desvio da lei ou ruptura com ela, senão com a obrigação. Por isso, Rousseau entende que não se trata de emancipar os indivíduos, de sorte que escapem à forma de comunidade; trata-se de encontrar a forma de comunidade que proteja cada um, de maneira que o indivíduo, ao unir-se aos demais, ele efetivamente obedece à própria vontade. Para concluir esta breve apresentação do sentido da liberdade na doutrina de Rousseau, o fato é que somente pela renúncia definitiva à indiferença, enquanto primitive indépendance que rege sua vontade natural, o homem usa de sua liberdade como fator de produção e realização no mundo da vida.

II

No Brasil, a idéia da liberdade como princípio ontológico aparece pela primeira vez com o Padre Antonio Vieira (1608-1697), ainda no âmbito de uma tradição filosófica de caráter escolástico e contemplativo. Da sua preocupação teórica quanto à causa da ineficácia dos sermões[5], cujo fim último é o “conhecimento do Criador” [6], podemos deduzir a seguinte questão: Como pode o homem conceber o Criador, que é imaterial, “actus purus [7], e seguir a sua lei, sem o conhecimento de si mesmo como alma, e não como corpo? Daí a necessidade do conhecimento de si: “neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos” (VIEIRA, As cinco pedras da funda de Davi). Ora, uma vez considerando o homem natural constituído de corpo e alma, é pela visão da alma em separado do próprio corpo que o homem verdadeiramente se conhece à imagem e semelhança do Criador:

"Enquanto o homem não sai do corpo, ignora-se, e só quando sai dele se conhece [...] para que o homem se conheça, há de entrar em si mesmo; e este sair de si, é entrar em si; porque é sair do exterior do homem, que é o corpo, e entrar e penetrar o interior dele, que é a alma [...] quem vê o corpo, vê um animal; quem vê a alma, vê ao homem [...] Quando S. Paulo (e eu com ele) chama homem à alma, não fala da parte do homem, senão de todo o homem; mas não do homem físico e natural, senão do homem moral, a quem ele queria instruir e formar." (VIEIRA, idem)

Logo, não é em seu estado natural que o homem alcança a eficácia em suas ações. Pelo contrário, quando segue a natureza, é pelo corpo, e pelo apetite sensitivo movendo a vontade, que o homem se engana, erra e peca: “Almas, almas, vivei como almas: se conheceis que a alma é racional, governe a razão, e não o apetite” (VIEIRA, idem). Desse modo, chamando a atenção do indivíduo para a necessidade do governo de si por negação da vontade ilimitada, que é o estado em que ela se encontra no homem natural, Vieira demonstra uma perfeita sintonia com Tomás de Aquino, e mais ao fundo com Agostinho, quando entende que toda a eficácia nas próprias ações implica o uso teórico da vontade[8]. E isto quer dizer o seguinte: que da vontade exclusivamente depende o querer e o não querer. Mas como pode tornar-se eficaz uma vontade contingente, que pode querer e não querer? A resposta é a seguinte: a vontade se move por si segundo o modo da necessidade se, e na medida em que, ela é indiferente à possibilidade de escolha entre os dois contrários. Já não se trata agora, evidentemente, da necessidade material do apetite, e sim da necessidade do dever fundada na obrigação. Desse modo, entretanto, quando o indivíduo obedece à lei, ele não escolhe, ele obedece cegamente. Eis como explicamos em Vieira o sentido da obrigação: em face da lei de Deus, o indivíduo reconhece, pela razão, a universalidade da lei como sendo esta a condição de possibilidade da vida em comunidade, da vida civilizada; de maneira que a obediência do indivíduo não se faz pela força, senão pela própria vontade, sobretudo porque, tendo experimentado os benefícios da lei de Deus, como o amor e a compaixão, ele tem fé e obedece cegamente à lei de Deus pelo bem que recebe[9]: “Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer o que elas dizem?” (VIEIRA, Sermão da sexagésima, IX). Desse modo, a obrigação se converte em essência do homem na vida em comunidade; e enquanto o exercício da obrigação, o ofício ou dever, o trabalho enfim, constitui-se na própria natureza da pessoa como participante na obra de criação da vida em comum. Considerando o modo do ser pelo qual a vontade se move por si, inteiramente indiferente a querer e não querer por obrigação à lei de Deus, não é pelo seu ser enquanto determinação natural que o homem se torna uma força poderosa de realização sobre as próprias ações, senão pelo seu dever-ser:

"Bom era que nos igualáramos todos: mas como se podem igualar extremos que têm a essência na mesma desigualdade? Quem compõe os três estados do Reino, é a desigualdade das pessoas. Pois como se hão de igualar os três estados, se são estados porque são desiguais? Como? [...] Não é necessária Filosofia para saber que um indivíduo não pode ter duas essências. Pois se os Apóstolos eram homens, se eram indivíduos da natureza humana, como lhes diz Cristo que são sal: Vos estis sal? [...] Quis-nos ensinar Cristo Senhor nosso, que pelas conveniências do bem comum se hão de transformar os homens, e que hão de deixar de ser o que são por natureza, para serem o que devem ser por obrigação [...] porque o ofício há-se de transformar em natureza, a obrigação há-se de converter em essência, e devem os homens deixar o que são, para chegarem a ser o que devem. Assim o fazia o Batista, que, perguntado quem era, respondeu: Ego sum vox: Eu sou uma voz. Calou o nome da pessoa, e disse o nome do ofício; porque cada um é o que deve ser, e senão, não é o que deve." (VIEIRA, Sermão de Santo Antonio, de 1642)

A indiferença na vontade aparece claramente como expressão de um sentido contemplativo da liberdade quando, em pregação à Irmandade dos Pretos de um engenho na Bahia, Vieira compara a situação dos escravos ao martírio de Cristo. Sua doutrina é a seguinte: assim como é pelo corpo que o homem padece o que não quer, é pelo conhecimento de si como uma vontade indiferente a querer e não querer, quando o indivíduo se torna capaz de obrigar-se por si às determinações universais da lei de Deus, que nossas ações adquirem valor e podem dar-nos o mérito dos benefícios: “Todos querem [...] ser glorificados com Cristo; mas não querem padecer, nem ter parte na Cruz com Cristo” (VIEIRA, Sermão XIV, da série Maria Rosa Mística). Dessa forma, Vieira ensinava que, embora escravizado e vivendo em promiscuidade, numa realidade “que é uma semelhança de inferno”, o negro africano poderia encontrar valor em seu trabalho e dignidade em sua condição desde que, comparativamente a Cristo, ele contemplasse a si mesmo como sendo indiferente ao mistério da dor enquanto uma determinação da natureza corpórea: “Bem-aventurados vós se soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, e com a conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança aproveitar e santificar o trabalho!” (VIEIRA, ibidem). E assim, conhecendo a si mesmo, não mais como vítima da natureza, senão como criatura de Deus, e como alguém que assume o seu ofício, o escravo torna-se um ente moral, segundo a forma de sua participação no mundo da vida: livre, portanto, para conformar-se e, acima de tudo, para transformar-se em protagonista do drama da humanidade, convertendo assim, pela virtude, “o inferno em paraíso”:

Quis Deus que nascessem à Fé [os negros africanos no Brasil] debaixo do signo da sua Paixão, e que ela, assim como lhe havia de ser o exemplo para a paciência, lhe fosse também o alívio para o trabalho [...] Que tem que ver a liberdade de uma ave com penas e asas para voar, com a prisão do que se não pode bulir dali por meses e anos, e talvez por toda a vida? [...] se não só de dia, mas de noite vos virdes atados a essas caldeiras com uma forte cadeia, que só vos deixe livres as mãos para o trabalho, e não os pés para dar um passo; nem por isso vos desconsoleis e desanimeis; orai e meditai os mistérios dolorosos, acompanhando a Cristo [...] Oh quem me dera asas como de pombas para voar e descansar! E estas são as mesmas que eu vos prometo no meio dessa miséria [...] porque é tal a virtude dos mistérios dolorosos da Paixão de Cristo para os que orando os meditam [...] que o ferro se lhes converte em prata, o cobre em ouro, a prisão em liberdade, o trabalho em descanso, o inferno em paraíso, e os mesmos homens, posto que pretos, em Anjos." (VIEIRA, ibidem)

III

Quem primeiramente distinguiu na atitude contemplativa o principal entrave à modernização cultural brasileira foi Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882). Sua visão filosófica do problema se revela na preocupação em definir um conceito intrínseco da liberdade, inerente à consciência de si, que justificasse o empenho de atender às diferentes, e muitas vezes contrárias, manifestações da filosofia moderna, mas sem prejuízo da própria experiência histórico-cultural. Para sermos mais precisos, vemos que nele é evidente a percepção da condicionalidade histórica do sujeito pensante, quando nos chama a atenção para a mudança de método na maneira de pensar introduzida pela filosofia moderna, da seguinte forma: no contexto do ensino filosófico brasileiro subordinado à teologia, aprendemos que a alma racional, enquanto objeto de conhecimento, é o efeito da conversão[10], exatamente porque, segundo Vieira, “assim como Deus nesta vida se conhece por fé, assim se conhece por fé também a alma” (VIEIRA, As cinco pedras da funda de Davi, V); no contexto do Iluminismo, pelo contrário, a alma racional é a causa de todo o objeto de conhecimento:

"Custa-nos muito no meio, ou no fim da vida, renovar as nossas idéias, como o mudar de linguagem, e reformar os nossos costumes. Assim, não há verdade em ciência alguma, não há fato novo, achado pelo trabalho assíduo de alguns espíritos, que não fosse, e não seja combatido por mil juízos antecipados [...] não podendo conciliar fatos que nos parecem contrários ao que sabemos, negamos hoje o que afirmamos ontem, damos agora como causa o que antes reconhecemos ser efeito [...] Não parecerá agora extravagante pensamento se dissermos que o espírito não está no corpo e no espaço, mas sim que o corpo e o espaço estão intelectualmente no espírito." (MAGALHÃES, Fatos do espírito humano, XV)

De fato, posicionando-se em relação ao contexto do Iluminismo francês, Magalhães abre uma via de acesso aos fundamentos da filosofia moderna. Isto é evidente, quando nos lembramos da afirmação cartesiana de que “propriamente falando, só concebemos os corpos pela faculdade de entender em nós existente, e não pela imaginação nem pelos sentidos, e que não os conhecemos pelo fato de os ver ou de tocá-los, mas somente por os conceber pelo pensamento” (DESCARTES, Meditações II, 18). Ressaltemos, entretanto, que em Magalhães o acesso aos mestres da filosofia moderna parece orientado pela necessidade a priori de corrigir historicamente a visão dos problemas como problemas filosóficos. Neste sentido, é essencial o diálogo com o passado. E assim ele preserva a concepção do homem defendida por Vieira como uma vontade que se move por si, porém dando um passo adiante, isto é, já não concebe a ação moral pela obrigação como uma obediência cega, senão pela liberdade de arbítrio: “o espírito humano não é um simples pensamento da inteligência eterna que, sem conhecer-se, se mova por determinações necessárias [...] O espírito tem consciência de si; na sua inteligência se refletem os pensamentos de Deus; ele procura compreendê-los, delibera, e obra por si mesmo” (MAGALHÃES, Fatos do espírito humano, 2004, p. 353).

O pressuposto da obrigação como obediência cega fez com que Magalhães remontasse ao contexto do Humanismo, onde se levanta a questão se a presciência divina é incompatível com a liberdade humana. No século XVI, os teólogos e filósofos jesuítas, em resposta às concepções de Lutero e Calvino, conciliaram a presciência divina e a liberdade de arbítrio. Diz-se livre, define Luis de Molina, “aquele agente que, postos todos os requisitos para agir, pode agir e não agir, ou agir de maneira que possa agir também ao contrário”[11] No século seguinte, Descartes definirá com precisão este sentido intrínseco da liberdade, a qual, “consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir) ou, antes, somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir às coisas que o entendimento nos propõe, agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos obrigue a tanto” (Meditação Quarta, 9).

Ao defender a tese de que a liberdade de arbítrio, caracterizada pela contingência, não é inconciliável com a necessidade da lei, Gonçalves de Magalhães nos permite vislumbrar as duas direções de uma mesma linha de pesquisa que, ao fundo, nos remete definitivamente ao contexto do Humanismo; e à frente nos indica a consciência como sendo um domínio absoluto em oposição ao absoluto da existência em si, de maneira que a liberdade enquanto propriedade da vontade não é possível sem a necessidade a que estamos submetidos pelo próprio corpo, em termos de luta da liberdade contra a necessidade:

"A liberdade de muitos só era possível com algum elemento fatal, que os reunisse, e os harmonizasse; e a coexistência da liberdade e da necessidade prova que tudo foi previsto e ordenado com maior sabedoria que a ordem de todo esse imenso universo. E como de fato existe esta harmonia da liberdade e da necessidade, nenhuma dificuldade temos de admitir o livre-arbítrio, e a presciência divina. Este grande problema da conciliação do livre-arbítrio e da presciência divina, tão discutido pelos maiores teólogos e filósofos cristãos [...] Para o mérito do homem, para a sua virtude, basta a intenção com que ele livremente faz o que deve fazer, ou se opõe, sem que possa subtrair-se à necessidade: e essa liberdade de resolução, e o seu mérito, são tanto maiores quanto ele ignora o que há de acontecer, e se atribui a determinação e a execução [...] Livres somos nos nossos esforços, e o que há de ser acontece, não por ter sido previsto e determinado, mas como uma conseqüência natural da luta da liberdade contra a necessidade." (MAGALHÃES, idem, pp. 357-359)

A tarefa filosófica de Gonçalves de Magalhães foi proclamar o absurdo de uma espiritualidade contemplativa ante a necessidade de reforma da cultura e da sociedade pós-Independência[12]. Neste aspecto, ele reflete claramente o influxo da “filosofia das luzes”, particularmente do Iluminismo francês de fundo cristão, a exemplo de Rousseau. São várias as passagens, como, por exemplo, quando afirma que Deus nos criou para saber e poder, referindo-se então à capacidade humana de aperfeiçoar-se pela “faculdade de inventar, testemunhada pelas ciências progressivas” (MAGALHÃES, idem, p. 354); ou ainda, quando argumenta, de maneira muito semelhante ao Discurso rousseauniano, que “o corpo não nos foi dado como uma condição de saber e de querer, mas como uma sujeição que coarctasse esse poder livre, de que abusaríamos, chamando-nos à vida prática” (MAGALHÃES, ibidem). Daí o seu reparo aos contemplativos e aos defensores do “bom selvagem”:

"Podia Deus sem dúvida criar uma sociedade de espíritos puros, não obrigados a coisa alguma, não sujeitos à menor dor, seres angélicos que vivessem em uma eterna bem-aventurança, só contemplando as maravilhas do seu criador. Mas qual seria o mérito desses espíritos para tanta ventura? Necessita Deus de admiradores inúteis?" (MAGALHÃES, Fatos do espírito humano, p. 355). 

"Caldas [Antonio Pereira de Souza Caldas, 1762-1814], o primeiro dos nossos líricos, tão cheio de saber, e que pudera ter sido o reformador da nossa Poesia, nos seus primores d’arte, nem sempre se apoderou desta idéia [...] e quando ele é original causa mesmo dó que cantasse o homem selvagem de preferência ao civilizado, como se aquele a este superasse, como se a civilização não fosse obra de Deus, à que era o homem chamado pela força da inteligência, com que a Providência dos demais seres o distinguira!" (MAGALHÃES, Suspiros poéticos e saudades, Lede, 1836)

Não obstante as devidas diferenças, a exigência de liberdade em Gonçalves de Magalhães encontra-se em perfeita sintonia com o pensamento de Descartes, quando este afirma: “para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou de outro dos dois contrários; mas antes, quanto mais eu pender para um, seja porque eu conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja porque Deus disponha assim o interior do meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei [...] De maneira que esta indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da liberdade, e faz parecer mais uma carência no conhecimento do que uma perfeição na vontade” (DESCARTES, Meditações, IV). 

Notas
[1] “Moderno” exprime muitos sentidos. Em geral, é usado para distinguir o mais recente, a novidade, o que irrompe e anuncia uma mudança das concepções tradicionais. Por este aspecto, a vanguarda, ainda que passageira em sua adesão ao novo, ou em sua proposta de inovação, costuma ser qualificada de “moderna”. Em seu sentido filosófico, porém, significa tanto uma determinada época da história da humanidade, que sucede a Idade Média, como a forma da vida que lhe é inerente. É neste último sentido que usaremos o termo “moderno” e seus cognatos.
[2] Representativo dessa fase de aproximação ao espírito moderno é o nome de Antonio Pereira de Souza Caldas (Rio de Janeiro, 1762-1814). Ainda estudante de direito em Coimbra, Souza Caldas publicou poemas profanos, sendo detido e condenado pelo Santo Ofício como “herege, naturalista, deísta e blasfemo” (SARAIVA, História da literatura portuguesa, p. 685), e submetido a exame de consciência e reeducação no convento oratoriano de Rilhafoles; mais tarde, recebido pelo papa Pio VI em Roma, aí se ordenou sacerdote. Em sua volta definitiva para o Brasil (1808), notabilizou-se na corte como orador sacro e, segundo consta, ainda teria publicado duas cartas em defesa da liberdade de opinião (SARAIVA, idem, p. 686). Autor de extensa obra literária, famosa é sua Ode ao Homem Selvagem (1784), sob influência da idéia do homem natural de Jean-Jacques Rousseau. Do seu legado, ainda são acessíveis: Breves meditações sobre as máximas eternas, Poesias líricas, Obras poéticas (Paris, 1820-21). Outros nomes representativos são os de D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1742-1831), fundador do Seminário de Olinda, e José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838). Temos também o famoso testemunho de Frei Francisco do Monte Alverne (1784-1858), no qual ele se refere à necessidade histórica de o intelectual brasileiro emancipar o próprio pensamento, observando que sabia, “com Montesquieu [Défense de l’Esprit des lois], ser impossível realizar alguma coisa de importante, desde que fosse mister levar à balança nossos pensamentos” (MONTE ALVERNE, Obras oratórias, Preliminar, p. IX).
[3] Vale considerar o testemunho daquele que fez a reforma da literatura brasileira pela introdução do romantismo: “Até aqui, como só se procurava fazer uma obra segundo a Arte, imitar era o meio indicado; fingida era a inspiração, e artificial o entusiasmo. Desprezavam os poetas a consideração se a Mitologia podia, ou não, influir sobre nós; contanto que dissessem que as Musas do Hélicon os inspiravam, que Febo guiava seu carro puxado pela quadriga, que a Aurora abria as portas do Oriente com seus dedos de rosas, e outras tais e quejandas imagens tão usadas, cuidavam que tudo tinham feito, e que com Homero emparelhavam; como se pudesse parecer belo quem achasse algum velho manto grego, e com ele se cobrisse; antigos e safados ornamentos, de que todos se servem, a ninguém honram.” (MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. Suspiros poéticos e saudades, Lede. Paris, 1836.)
[4] Refiro-me aqui, sobretudo, às teses políticas defendidas por Montesquieu e Rousseau, e à idéia de progresso em Voltaire. Observe-se que foi por exclusão ideológica, após o fim da política iluminista de Napoleão e o advento da Restauração, que eles se encontraram, em sua maioria, desempregados, e por esta razão principal firmaram contrato para trabalhar junto à corte portuguesa no Brasil.
[5] “Antigamente convertia-se o mundo, hoje por que se não converte ninguém?” Cf. VIEIRA, Sermão da sexagésima.
[6] Como se sabe, a tradição filosófica subjacente à educação brasileira durante o período colonial é o aristotelismo de origem escolástica, cujo intérprete privilegiado de Aristóteles é Tomás de Aquino. O ideal contemplativo do saber, proposto no método dos jesuítas, a Ratio Studiorum, corresponde ao uso da razão para efeito de “conhecimento do Criador”, cuja imagem renovada no espírito humano evitaria o erro e o pecado. Isto é o que se verifica nas Regras do Professor de Filosofia, onde se lê logo no início:“1. Fim - Como as artes e as ciências da natureza preparam a inteligência para a teologia e contribuem para a sua perfeita compreensão e aplicação prática, e por si mesmas concorrem para o mesmo fim, o professor, procurando sinceramente em todas as coisas a honra e a glória de Deus, trate-as com a diligência devida, de modo que prepare os seus alunos, sobretudo os nossos, para a teologia e acima de tudo os estimule ao conhecimento do Criador”. Cf. Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Jesu.
[7] Sendo o Criador o princípio ativo em função do qual toda a matéria em sua potencialidade passiva pode ser algo ou deixar de sê-lo, tal princípio ativo não pode conter matéria, sendo, portanto, imaterial (TOMÁS DE AQUINO, Summa contra gentiles I, 17).
[8] Segundo Tomás de Aquino, “é manifesto que, pela paixão do apetite sensitivo, o homem é imutado para alguma disposição. Por onde, quando levado por uma paixão, parece-lhe conveniente o que lhe não pareceria se dela estivesse isento; assim, o que parece bom ao irado não parece ao calmo. Deste modo, pois, quanto ao objeto, o apetite sensitivo move a vontade” (Summa theologiae I-II, q. IX, a. II); mas, ao contrário, “a vontade é senhora dos seus atos e dela depende o querer e o não querer [...] em razão do fim, objeto da vontade, a ela pertence mover as outras potências [...] Ora, é manifesto que o intelecto, conhecendo o princípio, reduz-se da potência ao ato, quanto ao conhecimento das conclusões, e deste modo a si mesmo se move. E semelhantemente, a vontade, querendo o fim, move-se a si mesma a querer os meios” (idem, a. III). Antes, porém, de Tomás de Aquino, Agostinho afirmara que “pelo mesmo modo como [...] a mesma razão se inclui entre os objetos que conhecemos pela razão [...] também podemos usar da mesma vontade livre por meio dela mesma. E assim, de algum modo usa de si mesma a vontade que usa das outras coisas, como se conhece a si mesma a razão, que também conhece as outras coisas (O livre arbítrio II, XIX).
[9] Tal concepção remonta ao tratado da Virtuosa benfeitoria (1430), do Infante D. Pedro, para quem o meio eficaz de promover a harmonia social é uma política governamental de concessão de benefícios, em virtude dos quais os súditos obedecem ao poder instituído “não como servos em constrangida sujeição, mas segundo homens livres em obediência desejosa” (cf. ed. cit. p. 567).
[10] Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? (VIEIRA, Sermão da sexagésima, III);
[11] “Quo pacto illud agens liberum dicitur quod positis omnibus requisitis ad agendum potest agere et non agere aut ita agere unum ut contrarium etiam agere possit.” Cf. Luis de Molina, Concordia, ed. cit., p. 14.
[12] “Toca ao nosso século restaurar as ruínas e reparar as faltas dos passados séculos. Cada nação livre reconhece hoje mais que nunca a necessidade de marchar. Marchar para uma nação é engrandecer-se moralmente, é desenvolver todos os elementos da civilização [...] O povo que se olvida a si mesmo, que ignora o seu passado, como o seu presente, como tudo o que nele se passa, esse povo ficará sempre na imobilidade [...] Nada de exclusão, nada de desprezo. Tudo o que pode concorrer para o esclarecimento da história geral dos progressos da humanidade merecer deve a nossa consideração. Jamais uma nação poderá prever seu futuro, se não conhece o que ela é comparativamente com o que ela foi. Estudar o passado é ver melhor o presente, é saber como se deve marchar para um futuro mais brilhante.” Cf. Discurso sobre a história da literatura do Brasil (1836), II.

Farias Brito: filósofo da liberdade

Luiz Alberto Cerqueira (Coordenador do CEFIB) 
Leonardo Almada (Doutorando do PPGF junto ao CEFIB)
  

Homenagem a Farias Brito (1862-1917), aos 90 anos de sua morte,
em presença de sua neta Sulamita Castro Azevedo e Silva
e demais descendentes.
IFCS, 25/09/2007



Notas ao fim do texto.
Para uma biografia de Farias Brito, consultar Jônatas Serrano: 



 
Farias Brito pertence a uma estirpe de filósofos cuja preocupação essencial se constitui no problema mesmo da filosofia: o conhecimento de si como espírito ou consciência. O que queremos dizer com isto? Primeiramente, que a unidade e a identidade de sua obra filosófica, que compreende seis livros publicados, giram em torno à necessidade desse conhecimento. Esta é uma evidência que se nos impõe desde a primeira obra filosófica, de 1895, onde ele faz uma declaração explícita de intenções: “quero, numa palavra, interrogar os segredos da consciência de modo a explicar a cada um a necessidade em que está de compreender o papel que representa no mundo [...] quero estudar esta ciência incomparável de que falava Sócrates”[1]. Tal orientação se renovará sempre, em momentos marcantes da obra. Eis como ele conclui o seu texto mais famoso — O mundo interior: “de toda a forma, a verdade fundamental, a verdade que é o centro de todo o trabalho do espírito e o princípio mesmo do método, é ainda e será talvez sempre, a que se encerra no velho preceito socrático: Conhece-te a ti mesmo”. Eis ainda como ele se apresenta no terceiro parágrafo de seu último texto, apenas iniciado — Ensaio sobre o conhecimento: “E comecei interrogando e é interrogando que termino [...] Que é tudo isto que me cerca? Que sou eu mesmo que trabalho por conhecer a verdade?”. Tal instância do conhecimento de si, entretanto, não é exclusividade de seu pensamento, senão da própria filosofia. E este segundo ponto a ressaltar nos revela a magnitude de seu pensamento: somente pela instância do conhecimento de si o indivíduo pode conceber a filosofia em sua historicidade, desde o momento socrático[2] ao cogito cartesiano[3], passando por Agostinho, na medida em que este distinguiu o ato de pensar, o “eu penso”, como atributo exclusivo do espírito, contrariamente ao corpo, e por isso mesmo como função inerente ou inata ao espírito[4]. Portanto, é assim, pelo sentido da filosofia como uma disciplina cujo objeto é em cada um a consideração do espírito em separado do próprio corpo, como princípio de conhecimento e ação moral, que devemos situar Farias Brito tanto no âmbito da história da filosofia ocidental quanto em relação ao nascimento da filosofia no Brasil. Sua apresentação, como filósofo brasileiro em face da possibilidade mesma de uma filosofia brasileira, pressupõe, sem dúvida, uma trajetória desse sentido da filosofia no Brasil.

Para Farias Brito, há uma relação originária entre o “conhece-te a ti mesmo” e a idéia de ciência. Tal relação configura o ideal grego do saber como um conhecimento virtuoso, de caráter universal e objetivo, de maneira que o valor do saber universal e objetivo adquirido como uma experiência atual implica o conhecimento de si para o efeito de uso teórico da razão. Consequentemente, o conhecimento de si tem um caráter ontológico: não só é anterior como serve de fundamento à ciência. Assim sendo, do ponto de vista da historicidade da ciência, a irrupção do método científico introduzido pelos físicos modernos no século XVII deve ser considerada um efeito remoto daquele ideal grego de ciência, e, por isso mesmo, uma vez demarcado o caminho seguro da ciência, ela se constitui em condição para o ensino filosófico, até então historicamente subordinado às questões teológicas. Kant foi o intérprete desta condicionalidade histórica entre a ciência e a filosofia, ao estabelecer, na Crítica da razão pura, que o uso metafísico da razão, no qual se transcende os limites da experiência empírica, não carece de qualquer ajuda da razão teórica, mas tem de assegurar-se contra a reação desta, para não entrar em contradição consigo mesma. E é deste modo que se justificam as seguintes afirmações britianas, observando-se que, nas primeiras décadas do século XX, o ensino filosófico no Brasil ainda dependia dos seminários religiosos para sobreviver[5]:

"A ciência, que é produto da filosofia, se faz, por sua vez, condição da filosofia" (A base física do espírito, Introdução, III, VII).

"Cada filósofo sofre a influência da ciência especial a cuja inspiração preponderante obedece, mas sempre que se entrega à especulação filosófica propriamente dita, o que tem em vista e o que procura é interpretar o espírito" (O mundo interior, §5º).

Cabe advertir, entretanto, que esta expressão do sentido da filosofia em função da ciência não configura absolutamente uma exigência de aplicação do método da ciência à instância do conhecimento filosófico, senão ao uso meramente contemplativo da razão em termos do que historicamente se denominou “dogmatismo da razão”. No Brasil do século XIX, após dois séculos de ensino filosófico subordinado à teologia, era da maior importância compreender a diferença entre conhecimento e fé. Mas ao posicionar-se radicalmente contra a pretensão dos naturalistas e positivistas de estender o método das “ciências da natureza” ao conhecimento do psíquico, Farias Brito nada mais fez do que levar às últimas conseqüências a seguinte tese kantiana: que somente pela consideração da vontade como pertencente a uma coisa em si, isto é, a alma humana como sendo não sujeita às leis da natureza, podemos compreender em que sentido a liberdade é princípio de ação moral[6].

Quando Farias Brito, imprimindo uma significação positiva à esfera da “coisa em si” kantiana, apóia-se na possibilidade metafísica de a razão transcender os limites da experiência sem entrar em contradição consigo mesma, o que sem dúvida está em jogo é a ação moral em sua intencionalidade, própria de um espírito que é a um só tempo livre e criador. A compreensão do espírito a partir de seu “poder agente e real, vivo e concreto, que não somente sofre a ação dos elementos exteriores, como ao mesmo tempo é capaz de agir sobre eles” define a vida do espírito do ponto de vista dela mesma, considerada em si, e jamais como um fenômeno físico ou mesmo psicofísico (O mundo interior, §3).

Nesse sentido, é o espírito um princípio vivo de ação, capaz não só de exercer seu domínio sobre a natureza, sobre as coisas, mas sobretudo capaz de exercer o governo de si mesmo, com liberdade. É o espírito a força criadora por cujas mãos tanto pode o homem vivenciar o espanto e admitir a douta ignorância como princípio de conhecimento quanto pode criar alguma coisa de novo e interferir na realidade por meio das maravilhas da arte. Daí que se vê a necessidade de reverter a concepção positivista que afirmava ser a psicologia a última das ciências, tanto por sua aparição tardia quanto por ser ainda uma ciência imperfeita e incipiente. A posição de Farias Brito, portanto, aponta para a idéia de psicologia como a primeira das ciências: por um lado, pelo fato de o espírito ser o princípio dos princípios, a verdade das verdades, o fundamento de toda realidade e a base de todo conhecimento; por outro, por consistir em uma disciplina a qual existe desde que apareceu no mundo um ser pensante e livre, porque “capaz de refletir sobre si mesmo e de agir determinado por idéias” (ibidem). A mesma razão pela qual atribuem o retardo à psicologia é o que justifica a célebre afirmação de Farias Brito de que a mais velha das ciências tem seu mérito exatamente em função do fato de que seu objeto, o espírito livre, não sujeito às leis da natureza, se encontra para além do que alcançam os métodos das ciências da natureza.

É o método próprio da filosofia que, de acordo com Farias Brito, nos dá o exemplo mais vivo de uma psicologia que “não se aprende nos livros, mas na luta mesma da vida: é uma ciência que, por assim dizer, não se aprende, mas vive-se; ciência que faz parte orgânica daquele que a possui, e em que o objeto do conhecimento é consubstancial com o sujeito” (O mundo interior, § 4). A preeminência de tal método justifica-se, pois, no poder que tem de levar em consideração o “ser consciente, o ser que é o princípio dos fenômenos psíquicos” e que, assim, é por si “misterioso e estranho”, de tal sorte que não pode ser realmente contemplado nas mesmas condições em que são os fenômenos da realidade exterior, sob a égide do método matemático-experimental. Com efeito, para além da legimitidade inerente ao poder que as ciências naturais têm de fazer previsões de qualquer fato na ordem física, a introspecção, enquanto o método próprio da psicologia, apreende o espírito para o qual é impossível qualquer previsibilidade segura e cujo fato decisivo — mediante o qual podemos concebê-lo em separado da matéria — é a liberdade. Nesse sentido, é a consideração do espírito em separado da matéria o que faz da liberdade o fato mais claro do espírito humano e, assim, o que propicia a visão do espírito enquanto energia viva e criadora. E é exatamente por isso que se impõe o método introspectivo como método filosófico, para além da constatação de que o eu vive à sua própria sombra: “a introspecção revela a causalidade mecânica no mundo à sombra da causalidade psíquica”, de modo que, assim, “não só completa-se a revolução copernicana na metafísica, enunciada por Kant, como também resgata-se o sentido de totalidade do real como objeto da filosofia enquanto tarefa infinita” (CERQUEIRA, 2003a, p.37). Farias Brito, portanto, ao enunciar uma compreensão de filosofia como atividade permanente do espírito e ao afirmar a necessidade de reinserir a filosofia no ideal socrático do “Conhece-te a ti mesmo”, torna-se um ponto de referência a partir do qual resgatamos a experiência histórica brasileira de autoconsciência, por um lado, como também determina, mediante o estabelecimento da ciência do espírito como princípio e fim da filosofia, a possibilidade de um acesso à essência da modernidade (CERQUEIRA, 2006). Por um lado, portanto, é em Farias Brito que vislumbramos a maturidade de um movimento cujo início remonta à concepção de Vieira quanto à conversão como princípio da consciência de si, passando pela necessidade do conhecimento de si em Magalhães e pela teoria da cultura como contraposição à natureza, tal qual se verifica em Tobias Barreto. Por outro lado, a perspectiva de Farias Brito aponta, de modo independente, para a mentalidade moderna, isto é, para o que propiciou o cogito cartesiano quanto à necessidade do conhecimento de si como inteligência e liberdade, enquanto a essência da filosofia:

"Farias Brito representa o coroamento de uma singular experiência histórica de pensar correspondente ao nascimento da filosofia no Brasil. Em sua obra distingue-se claramente um sentido de unidade em torno ao problema originário que perpassa toda a cultura brasileira desde a vigência do aristotelismo português no ensino filosófico. Trata-se do problema acerca da necessidade do conhecimento de si. Seu aprofundamento desse estudo na filosofia moderna, especialmente em torno à questão da coisa-em-si, e sua proposta de uma psicologia transcendente, não só incorporam e ampliam as teses apresentadas pelos seus antecessores no Brasil, especialmente Antônio Vieira, Gonçalves de Magalhães e Tobias Barreto, como colocam a filosofia brasileira na vanguarda do pensamento filosófico oitocentista em sua aspiração a uma ciência do espírito não limitada ao método das ciências naturais" (ibidem).

Notas
[1] Finalidade do mundo I: Introdução, VI.
[2] Sócrates é o primeiro a distinguir a necessidade de um conhecimento específico do espírito, enquanto “arte” exclusiva, como sendo esta a condição de um conhecimento prévio da nossa própria possibilidade de conhecer objetivamente na experiência, a começar pela própria existência (Platão, Alcibíades, ou Da natureza do homem: 128 d / 131 c).
[3] No Prefácio de suas Meditações, Descartes afirma que “no que concerne à alma, embora muitos tenham acreditado que não é fácil conhecer-lhe a natureza [...] ousei efetivamente empreendê-lo neste escrito”.
[4]. Tal é o inatismo das idéias em Agostinho, ressaltando-se uma segunda presença das coisas ao espírito — a representação —, já agora inteiramente liberta, pelo pensamento, das determinações mecânicas com que as mesmas coisas primeiramente se nos tornam presentes através dos sentidos do corpo: a idéia das coisas como representação é inata na medida em que se distingue como fenômeno estritamente relativo ao espírito, inteiramente psíquico e absolutamente independente dos sentidos do corpo, como, por exemplo, a idéia de Deus (Cf. Agostinho, Confissões: X, X-XI). É neste sentido que Descartes, respondendo às objeções de Hobbes, assim se exprime: “Quando digo que qualquer idéia é inata em relação a nós, não entendo que ela se apresente sempre ao nosso espírito, pois assim nenhuma certamente é inata. Entendo tão somente que temos em nós mesmos a faculdade de fazê-la apresentar-se” (Objectiones tertiae: X (AT: VII, 189); Troisièmes objections et réponses: X (ALQ: II, 622)).
[5] Dentre as principais novidades da reforma da educação promovida pela Constituição republicana de 1891 constavam, além da laicidade do ensino público, a supressão da disciplina Filosofia.
[6] Cf. Kant, Crítica da razão pura, B xxviii.